terça-feira, 20 de novembro de 2012

O CORPO SECO - CONTO

O Corpo Seco

Profª Mary
                   
                    Meu avô se chamava João Almeida, mas como era filho de dona Marcolina, acabou por se chamar João Marcolino de Almeida. Baixo, cabelo bem liso, moreno, uma barba bem rala e os dentes meio tortos denunciavam sua origem indígena. Uma pessoa comum a não ser pelo fato de contar "causos" como ninguém. Nessa hora, ele se transformava: imitava as vozes dos personagens, os gestos e os trejeitos, tornando-nos reféns de peripécias e aventuras que se enchiam de graça e de magia, graças ao seu talento nato de contador de histórias. Às vezes, para nosso desespero, começava a rir antes de terminar o causo e a gente ali, esperando que o riso gostoso, contagiante se acabasse. Na maioria das vezes, acabávamos rindo de sua risada. Minha infância, graças a ele, foi povoada de histórias: de lobisomem; de assombrações; de almas penadas; de "causos" como ele falava...
                    Nunca sabíamos se eram verdadeiras ou não. Pouco importava. O bom mesmo era estar ali ao pé dele, sentir medo e se encantar com o que tinha de sobra: imaginação e alegria.
                    Meu avô era de 1902, nasceu em Tatuí, casou-se aos 23 anos com "sua patroa", como se referia a minha avó Eliza de apenas 13 anos e vieram morar em Maracaí. Ali e nas redondezas tiveram seus doze filhos.
                     Nessa época, ganhava a vida fazendo transporte de carga (cereais, tecidos, açúcar, carne seca, etc.) em lombo de mulas que conduzia pelo sertão afora, enfrentando estradas ruins, chuvaradas ou sol a pino. Contava que, às vezes, ficava semanas ou meses longe de casa e era minha avó, mulher de fibra, que o ajudava costurando e lavando roupas para algumas famílias da cidade.
                      Sofreu muito pelos filhos que foram morrendo pelos caminhos da vida. Era muito triste ouvi-lo contar de quando seu filho Irineu, moço de apenas 20 anos, havia ficado doente, com um "febrão" que não passava nunca. Na manhã após uma noite de febre, pegou seu cavalo e andou 50 quilômetros para buscar remédio para o filho, quase matou o cavalo de tanto correr e no final da tarde ao chegar em casa, encontrou o filho morto. Quase enlouqueceu de tanto sofrimento, batia a cabeça na parede e pedia a Deus que o levasse também... Só muito tempo depois, ficara sabendo que quem matou seu filho foi uma epidemia de febre tifoide, que matara também milhares de pessoas, naquele ano.
                      Meu avô era, também, uma pessoa muito enérgica e ainda soa e, meus ouvidos o se "Fuja!", "Fuja!" com que nos afugentava de seu caminho quando atrapalhávamos na sua labuta diária: tratar dos porcos, consertar as cercas, prender os bezerros, etc.
                       Mas o melhor mesmo era quando à noitinha, nos reuníamos na área do poço de sua casa, cercado de muretas, onde sentávamos todos, pais, tios, irmãos e primos para ouvirmos suas histórias. Era uma festa: feita de causos e risadas até altas horas.
                       Ah, esqueci de dizer que ele foi um dos desbravadores da região de Pedrinhas. Quando chegou por lá, não havia estradas, eram picadas no meio da mata. Construiu uma casa de pau-a-pique e sapé bem ao lado de uma dessas matas. À noite podia ouvir o barulho das onças e pela manhã, podia ver as pegadas delas e de outros bichos, que o faziam não lagar nunca de sua cartucheira.
                     Contava que naquela época, havia muito valentão que resolvia tudo "na bala" e emendava "escreveu não leu, o pau comeu".
                       Essas e outras lembranças embalavam o sono dos pequenos e aceleravam o coração e o medo dos maiorzinhos como nós. Nada nos fazia perder a magia e o encantamento de suas histórias e até os adultos se deixavam ficar ali apesar do cansaço da lida na roça, de terem de se levantar ainda no escuro para tirar leite. Enfim, um tempo de "vacas magras", mas feliz.
                       Podemos creditar esses momentos à falta de luz elétrica - ela chegou bem mais tarde - e a escuridão favorecia o clima de mistério e de medo: aquele friozinho na "espinha", os pelos e os cabelos arrepiando... uma sensação indescritível.
                       E por falar em cabelos se arrepiando, uma de suas histórias era a nossa preferida: contava ele que dois vizinhos de terras viviam brigando por causa das divisas das terras. Um mudava a cerca de lugar, o outro vinha e a colocava no lugar de antes. Até que um dia, encontraram-se na divisa, discutiram e um deles sacou o revólver e matou o outro com vários tiros. O morto foi trazido pela família e enterrado aqui no cemitério de Assis. Diz à lenda que virou "corpo seco", só pele e osso, mas suas unhas e cabelos continuam crescendo. Aparece de vez em quando para seus familiares, implorando que o desenterrem e enterrem na divisa de suas terras, o lugar onde fora morto. Acontece que todos da família morrem de medo e então oferecem muito dinheiro a quem fizer o "serviço". No entanto, há um, porém: tudo deve ser feito à meia noite porque o corpo nãodeve entrar em contato com a luz do dia e ainda as unhas e cabelos devem ser cortados. E aí, os corajosos desaparecem...
                       Ao final da história, o corpo todo arrepiado, o medo tomando conta da gente, riamos um riso nervoso e ao deitarmos, no escuro, o medo voltava forte, aquelas unhas enormes, os cabelos compridos e desgrenhados...
                       Meu avô também era uma pessoa muito mística, acreditava tanto em assombrações e almas penadas quanto no diabo, morria de medo do "coisa ruim", não tinha coragem de dizer o nome e só se referia a ele como "dianho". Daí suas histórias serem sempre sobre mortos que voltavam pessoas que vendiam a alma ao diabo para ficarem ricas ou porteiras que se abriam pelas almas penadas.
                      Ainda hoje, quando me vejo menina, as imagens que me vêm à lembrança são esses momentos de enlevo e de puro encantamento, proporcionados por essa pessoa tão querida que nos ajudou a exercitar a nossa imaginação. Foi o responsável por alimentar nossa fantasia na infância e nem sabia disto...